terça-feira, 4 de agosto de 2009

Entre Açores e Cabo Verde

Tenho um programa de alerta de novidades, por RSS, e uma das minhas chaves de pesquisa é cozinha açoriana. Foi fácil dar com uma receita interessante, coisa inventada por João Vasconcelos Costa, que já aqui tenho referido. Claro que não é cozinha açoriana tradicional, é cozinha de inspiração regional, neste caso com evocações culturais atraentes. Trata-se de uma sopa farta, aproveitando relações macaronésicas entre os Açores e Cabo Verde, cuja célebre cachupa inspira esta sopa. Transcrevo, com a devida vénia ao autor.

"Sopa macaronésica de tudo ou cachupa em versão açoriana

Fiz hoje ao almoço uma cachupa. Delicia-me como tudo o que, cozido como melhor exemplo, são pratos simples a viver só da qualidade dos ingredientes e da técnica de confecção (como diria Santi Santamaria, "para hacer uma olla podrida hace falta filosofia". Há milhentas receitas de cachupa, cada família tem a sua. Já recolhi muitas, diferentes, junto de amigos ilhéus, mas eu, não cabo-verdiano, só posso ter um critério. Gostar. E gostar, de entre muitas que tenho comido, acima de tudo a da Mena, a mulher caboverdiana de um amigo angolano muito conhecido. Dei por mim que, com excepção da mandioca e da feijoca, tudo o resto também era açoriano. De açoriano também podia haver um pouco mais, de temperos. Aqui fica a minha versão açoriana da cachupa da Mena. Melhor, até antecipo que isto podia servir para toda a Macaronésia, o conjunto arquipelágico de Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde.

500 g de milho pisado grosso, 2,5 dl ou 300 g de favas secas, 2,5 dl ou 300 g de feijão rajado (na falta, vermelho), 250 g de entrecosto, 250 g de carne de porco, 200 g de cachaço de vaca, 4 coxas de frango, 1/2 chouriço, 1/2 morcela, 100 g de toucinho (ou entremeada), 1 repolho açoriano pequeno, 2 batatas, 2 batatas doces médias, 200 g de abóbora, 1 cebola grande, 4 dentes de alho, 3 c. sopa de óleo, sal, pimenta preta, cravinho ou pimenta da Jamaica, louro, 1 c. sopa de massa de malagueta.

Cozer separadamente, sem sal, o milho pisado e pelado (melhor, em S. Miguel, comprar umas maçarocas de milho cozidas nas caldeiras das Furnas), as favas secas demolhadas de véspera e o feijão. Usar o mínimo possível de água, a cobrir, para ficar concentrada no fim da cozedura. Cozer as carnes, primeiro a vaca, depois o porco (15 minutos depois), adiante o frango e os enchidos (5 minutos depois, tudo até o total de 60-70 minutos ou 40 minutos em panela de pressão). Reservar as carnes, quentes, e, no caldo da carne, sem as carnes, cozer, em bocados, repolho, batata, batata doce, abóbora, bem como a cebola e o alho picados, regados com o óleo. Juntar as carnes, o milho bem pisado, a fava, o feijão e os legumes. Temperar, molhar com os caldos, na proporção devida (diria que 1/2 de caldo de carne, 1/4 de água de cozer o milho e 1/4 de água de cozer as favas e os feijões) e deixar apurar.

Servir a sopa de legumes num prato de sopa fundo, sobre um prato largo em que se dispôem as carnes à volta.

P. S. - Falei de óleo, mas não garanto que seja gordura tipicamente macaronésica, só sei dos Açores. Hoje, felizmente para quem cuida da sua nutrição, muita gente lá usa o azeite, mas não é tradicional. Azeite, ido do reino, era caro e só para fins especiais, não para gordura de cozinha. Tradicionais eram as gorduras animais, primeiro a banha, mais popular, depois a manteiga. Para fritos em maior quantidade, refogados, era o óleo de amendoim. Para lá foi com a malagueta e outros produtos da costa da Guiné. Os Açores, na volta do largo, a tomar a latitude do Tejo, eram o ponto derradeiro de abastecimento de frescos às frotas, da Índia e das Américas. Era estritamente proibido às naus comercializarem em terra os seus produtos, as especiarias que iriam encher o rés-do-chão do paço real. Mas há algum português que resista ao contrabando? A prova, neste caso, é o uso abundante, nas minhas ilhas, do óleo de amendoim e da malagueta, vindos da costa da Guiné, e das especiarias do oriente.

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