quarta-feira, 4 de março de 2009

COZIDO

Há tempos, li num livro de um meu patrício, "O gosto de bem comer", uma sugestão muito interessante de um cozido das Furnas feito em casa. Concordo inteiramente com ele no sentido de que S. Miguel tem estado a dar um tiro no pé em relação ao cozido, insistindo-se, guias turísticos e restaurantes, no gosto "subtil" do enxofre das caldeiras. Já comeram ovos podres? Isso é que é mesmo enxofre. E como há gente de bom gosto, tenho amigos que foram a S. Miguel e que se recusaram a comer tal "porcaria", lembrando-se do sabor a inferno.
Acho que João Vasconcelos Costa, o autor do livro, de quem me lembro bem como Costinha no meu tempo de liceu, tem razão, tal como confirmei numa experiência no último fim de semana. No entanto, parece-me que, principalmente em relação a amigos continentais, se justificam mais algumas notas.
Por toda a parte neste país, o cozido varia quase de família para família, traduzindo gostos estabelecidos. É a riqueza de coisa tão simples, prestar-se a todos os gostos. Em relação à tradição açoriana, há variantes respeitáveis, cada um fará como gosta: inhame, a marcar bem o tipicismo açoriano? galinha? couve (para além da couve de forrar a panela? chispe? Já indiscutivelmente necessários, no mínimo, são as carnes de vaca e porco, o toucinho, a linguiça, a morcela, o repolho, a batata, a batata doce, a cenoura. Anoto duas coisas importantes. Linguiça da nossa não se encontra neste lado do mar, mas apareceu agora um chouriço alentejano picante que substitui muito decentemente a linguiça. Cuidado com a morcela, aqui no continente. A mais vulgar é a de assar, que não vai bem, preferi a morcela expressamente indicada para cozer.
Outra coisa que me parece muito importante não incluir nesta receita são enchidos que se desfazem naquelas condições de cozedura: farinheira (que nem é tradicional nos Açores), chouriço mouro, bem como feijão, usado em alguns cozidos do continente. Neste meu almoço, houve amigos que pediram. Cozi à parte, de forma tradicional.
JVC omite no livro um pormenor técnico que se revelou fundamental para o sucesso deste cozido que fiz. Água a encher o tabuleiro do forno posto no fundo, a encher de vapor o forno, muito bem, é a base do "segredo". Mas a minha experiência foi de que isto exige duas coisas. O forno deve ser preaquecido a 150º antes de meter o tabuleiro com a água já a ferver e a panela, baixando-se para 110º quando já se está a fazer bastante vapor. Mais importante, só se deve ligar o aquecedor de baixo.
E garanto que foi um sucesso, com alguns açorianos a dizerem "afinal, o segredo do nosso cozido das Furnas é isto?". É: cozido a vapor, lento, a temperatura baixa, afinal uma das modas da nova-nova cozinha tecno-molecular.

DonMixx

5 comentários:

  1. Caro DonMixx

    Estou a ver que esse blog está a tornar-se um caso muito sério de profissionalismo ligado aos prazeres da gastronomia.

    Permita-me que discorde de si quanto “segredo do nosso cozido das Furnas é isto?". É: cozido a vapor, lento, a temperatura baixa”, ou pelo menos apresentar uma outra proposta do tão famosos cozido, pela chefe Lúcia T. F..

    Os ingredientes são basicamente os mesmo, ou seja ao gosto pessoal. Ao qual adicionava só uma cebola grande. A diferença está na forma de cozinhar. Coloca-se todos os ingredientes, pela ordem correcta, com a cebola primeiro no fundo numa panela de pressão e sem água. 20 minutos depois do “pivot “ dar a primeira volta, está pronto.

    A experimentar?!

    cumprimentos

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  2. Ora bem... primeiro diz que o cozido tem cheiro a enxofre... depois diz que tem amigos que se recusaram a comer tal porcaria. Mas que grande confusão. Se o cozido cheira a enxofre é porque tem algo estragado e não porque "foi feito nas furnas". Acho que também eu não comeria "tal porcaria" :)

    Como bem sabe com certeza o cozido das furnas não sabe, nem cheira a enxofre. E sim UMA PARTE do segredo é a lenta cozedura (6 horas) dos ingredientes que colocados pela ordem certa cozem todos no ponto e com os sucos a misturarem-se de forma divinal.
    Acredito que esta sua receita resulte num excelente cozido, mas faltam-lhe os sucos a misturarem-se e ... o ambiente natural do vale.
    Esse sim o verdadeiro segredo.
    Eu até posso ir colocar o cozido a cozer nas furnas mas se o comer em casa .. já não é um cozido nas furnas.

    Não poucos já me disseram que o cozido nas caldeiras da R. grande (12horas) é melhor que o das Furnas. Enfim, gostos com certeza.

    Outro gosto discutível é o do chouriço. Pelo amor de Deus.. por cá (Açores) só se encontram chouriços recheado de corante, pimentão e pimenta da terra daquela a "rasgar" (que em vez de deixar nódoa na roupa deixa um buraco :) )
    Os chouriços do norte, e os do alentejo.. o sérios claro, são do melhor. Em contrapartida ainda não encontrei uma morcela digna deste nome do outro lado do mar.
    De qualquer modo e como em tudo o que é boa gastronomia.. o essencial é -digo-o sempre- a qualidade dos ingredientes. Se são bons, até crus continuam a ser bons!!

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  3. ou experimentar a sugestão da panela de pressão.

    Quanto ao comentário de opapa, há grande confusão. Eu não disse que o cozido das Furnas cheirava ou sabia a enxofre. Disse é que há quem o diga, julgando que está a fazer bela propaganda. Por isso é que os tais amigos perderam uma boa oportunidade de o provar, enganados pela informação incorrecta.
    Quanto aos ingredientes, não se esqueça de que eu estava a referir-me a uma experiência um pouco brincalhona feita no continente, e para demonstrar a tal tese de que o cheiro infernal não tem nada a ver com o cozido. É claro que, principalmente os enchidos, foram uma aproximação, muito longe do genuinos.
    Não percebi essa dos sucos. Foi exactamente isso que eu consegui no tal cozido.

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  4. ahhhhhh.
    ....


    os sucos? mas ... ahh
    foi erro meu!
    como era no forno deduzi que não seria em panela, mas sim em tabuleiro :(
    ... ok é uma boa hipótese

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  5. Parece-me que é melhor esclarecer bem as dúvidas, reproduzindo o texto de JVC, no seu livro "O gosto de bem comer" (Ed. Caminho, 2005, pág. 155). Como se verá, creio que opapa e eu estamos de acordo.

    "Cozido das Furnas feito em casa
    Uma das grandes atracções turísticas de S. Miguel é o cozido das Furnas, feito na zona das caldeiras, enterrando na terra quente e com fumo vulcânico uma panela bem embrulhada contendo os ingredientes do cozido e deixando cozer durante largas horas. Há quem diga que os vapores vulcânicos contribuem essencialmente para o sabor indiscutivelmente diferente deste cozido. Desconfio desses sabores sulfurosos, potencialmente desagradáveis e que nunca notei e tenho dúvidas se os principais factores não serão a cozedura a vapor, a temperatura relativamente baixa e o longo tempo de cozedura. Isto pode-se reproduzir em casa, com alguma aproximação. Este cozido a vapor parece-me que não desmerece nada do das Furnas, a não ser na dificuldade de obter cá os enchidos micaelenses. Para se aproximar, aconselho bom chouriço alentejano e morcela da Beira Baixa, temperando o fundo de cozedura com uma c. café de pimenta da Caiena.
    É claro que não apresentava uma receita tão fora do vulgar sem a ter experimentado e garanto que funciona, se seguir bem as indicações. Julgo que o ponto critico é a temperatura do forno. Hoje, os fornos eléctricos têm regulação de temperatura, mas os de gás muitas vezes não têm. Regule o gás para temperatura média, de forma a que o forno não fique muito quente, mas esteja sempre com muito vapor. Se usa óculos, verá isto facilmente ao abrir a porta! Podem perguntar-me se vale a pena todo este trabalho e o consumo de energia durante tantas horas para um simples cozido. Como sou um adepto incondicional do cozido (isso que se chama de português, mas que é provavelmente a mais antiga culinária europeia – cozido, olla podrida, pot-au-feu, etc.), acho que nunca há um “simples” cozido e que vale a pena melhorá-lo. Para meu gosto, a concentração de sabores deste cozido é memorável, se os produtos forem de boa qualidade.
    Para 6 pessoas. Colocar numa panela, com um pequeno fundo de água com um pouco de pimenta da Caiena, por ordem (pormenor importante!) 500 g de carne de vaca de cozer, 500 g de perna de porco, 250 g de toucinho, 2 chouriços, 2 morcelas, 6 batatas, 4 batatas doces médias (essencial para dar o estilo micaelense!), duas cenouras, meio repolho e couve. A couve, em duas camadas de folhas inteiras, deve forrar toda a panela, sobre os legumes que cobrem as carnes. Temperar com sal e pimenta preta, entre cada camada. Tapar e cozer no forno em banho-maria a 150º, durante várias horas ou com um pequeno tacho com água a ferver, que se vai acrescentando se necessário. Ir vigiando o banho-maria para ter sempre água e o forno estar com bastante vapor. Depende muito do forno, mas há que contar com cerca de 6-7 horas. No fim, a couve que cobre o cozido deve estar muito seca e tostada e rejeita-se. No fim, deve ficar o cozido muito tenro e com um reduzido fundo de caldo, que destila das carnes. Com parte deste caldo coado – cuidado, que é muito forte – e mais água (no total, 2 vezes a quantidade de arroz), cozer arroz para acompanhar o cozido.
    Como se vê, este cozido não é muito variado em ingredientes. É assim o cozido açoriano. Recentemente, alguns restaurantes das Furnas estão a alargar a sua composição, contra a tradição, mas não vejo grande mal nisso, porque a cozinha está sempre em evolução. Para os que, de acordo com os variados hábitos regionais continentais, o quiserem variar, deixo uns palpites. Creio que enchidos muito moles, como o chouriço de sangue (que entra também no cozido tradicional açoriano) ou a farinheira, se vão desfazer por completo ao fim desta cozedura. Também me parece que grão ou feijão ficarão em papa. A excepção é o frango, que julgo que irá bem, por cima de todas as outras carnes. E, embora não seja de tradição, acho que o inhame lhe dará um tom regional genuíno. Mas uma regra absoluta: da última vez que comi este cozido nas Furnas, serviram também a couve verde, que fica intragável. Essa couve serve apenas de "tampa" ao cozido, nunca pode ser servida.

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